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  • Foto do escritorIvan Costa

Um bate papo entre César Lacerda e Rômulo Fróes, falando sobre parceria, produção musical e a vida.


crédito.luan cardoso

No final de 2016, os cantores e compositores César Lacerda e Rômulo Fróes resolveram materializar em um álbum uma parceria que se desenhou em alguns meses após se conhecerem. "O meu nome é qualquer um", título do disco, vem fazendo uma bonita trajetória nos palcos e deverá ser lançado em vinil no segundo semestre de 2017. Ao longo da estrada, os dois continuam produzindo canções e uma música foi especialmente composta para a gravação no novo disco de Filipe Catto. Aproveitamos um intervalo nos shows e pedimos que cada um fizesse três perguntas para o outro responder.

César pergunta pra Rômulo...

C.L- Queria começar essa nossa entrevista te pedindo para elaborar um pouco sobre a sua relação com o tempo. O tempo da sua vida, da sua idade, o tempo em que a gente vive e o tempo acelerado em comparação com uma outra ideia de tempo que nos regia há anos atrás... Enfim, como todas essas noções de tempo têm interferido na sua vida e na sua obra?


R.F- Toda a minha noção de tempo foi modificada este ano com a chegada da minha filha. Nada poderia me preparar para a transformação que a paternidade causaria na minha relação com o tempo. Não apenas o tempo perene, que por conta da minha paternidade tardia me fez repensar, por exemplo, os cuidados com a minha saúde, mas também o tempo cotidiano, que sofreu uma desaceleração extraordinária. Meu tempo agora é regido pela vida da minha filha, por suas necessidades. Meus compromissos se adaptam às suas demandas. E este tempo novo descarrega em mim uma contradição e um dilema. Ao mesmo tempo que me dá um imenso prazer dedicar-me à paternidade neste andamento lento, demorado, aumentou em mim uma ansiedade com o futuro, que eu acreditava já ter resolvido há muito tempo. Afinal, meu futuro agora não é mais somente meu, mas também da minha filha, meus desejos e minha ideia de felicidade foram transformados por ela. Fazendo um paralelo com a minha carreira, o tempo, que sempre foi meu aliado, pois desde sempre acreditei na permanência do meu trabalho e por isso logo cedo aprendi a controlar minha ansiedade com a sua aceitação, este mesmo tempo agora me empurra para as necessidades do presente. Posso até continuar construindo minha obra pensando na sua posteridade, mas mais do que nunca ela precisa existir e acontecer hoje, pelos motivos mais banais de nossa existência comum.

C.L- Esse nosso disco quer, de alguma forma, refletir sobre o papel, o lugar do "novo masculino". De certo modo, a gente se fez uma série de questionamentos e avaliações para criar essa obra. Mas e aí... Quem é esse tal novo homem? Você se sente adaptado aos novos tempos e às novas configurações de gênero? Acha necessário se adaptar? Ou ainda, você acredita nesse novo homem?


R.F- Não é questão de se adaptar a esse novo homem ou a esse novo masculino como você diz, a questão é se transformar perante este novo mundo que se configura mais fortemente nos últimos anos. É preciso estar aberto a esta nova configuração e ir encontrando seu lugar dentro dela. Neste sentido, mais uma vez a paternidade ocupa o eixo central da minha vida neste momento. A pergunta que faço a mim mesmo não é qual homem serei agora, mas que pai eu serei? E para isso continuo me valendo da arte, acredito nela como um importante instrumento na discussão e na construção de novos mundos, sem que pra isso ela necessariamente tenha que ser panfletária, literal, pelo contrário, acredito que quanto mais aberta a significados e proposições mais uma obra de arte se aproxima e se aprofunda do assunto que ela se propõe a discutir. Já disse em uma outra entrevista que, para mim, arte existe para mudar a sua vida e não para explicá-la. Não quero que a arte me mostre como a vida é, quero saber como a vida poderia ser! Acho que o nosso disco carrega esse desejo com ele.

C.L- Fazer música segue sendo a sua maneira mais potente de reflexão sobre a vida, sobre o mundo, não é? Mas, de certo modo, parece que a fruição de arte mudou. Como você pensa a arte e a sua fruição daqui pra diante?


R.F- Acho esse um problema insolúvel e que só se agrava com o passar dos anos. A dispersão contemporânea, curiosamente gerada pela oferta infinita de informação, é que faz com que seu trabalho se dilua em meio a tanta oferta. Já até trabalhei isso formalmente. Meu disco "Barulho feio" questionava justamente esse tempo contemporâneo, essa impossibilidade de uma fruição mais aprofundada. Pela chave do desconforto, com seus ruídos incessantes, seu andamento modorrento, sua falta de silêncio, eu tentava capturar a atenção do ouvinte pelo incômodo e, mesmo que esse incômodo o fizesse mudar de disco, interromper sua audição, já seria uma reação menos passiva com o meu trabalho.

Rômulo pergunta pra César...

R.F- Em que medida esse disco em parceria transformou seu trabalho e modificou sua maneira de compor? Acha que aconteceu uma mudança significativa ou você o considera dentro de um processo natural no desenvolvimento do seu trabalho? E, seguindo esse raciocínio, como imagina que esse disco influirá em seu próximo trabalho solo?


C.L- Esse disco, se visto mirando apenas em mim, e se isto for, de fato, possível, pode ser compreendido como o meu trabalho “paulistano” - e, nesse sentindo, talvez, ele possa ser lido, em oposição, como o seu disco “mineiro”, Rômulo. Ele é um disco de um observador. Algo de uma simbiose urgente, que nasceu dessa nossa parceria e fez com que comungássemos muito rápido de um mesmo ponto de mirada. Essa dinâmica é, portanto e por si só, muito diferente de tudo o que eu havia feito até então. Há algo de muito potente na comunhão. Há algo de muito potente em se dividir pontos de vista, escolhas, as decisões todas que envolvem se fazer um disco. A sua parceria me fez compor diferente, me fez gravar diferente, cantar diferente, tocar diferente. E eu sei que o mesmo aconteceu aí. Sinto que este disco é uma divisão muito clara nas trajetórias das nossas carreiras. É certo que o que virá em seguida terá refletido a imagem das escolhas desse encontro.

R.F- Você é um cantautor com habilidades extraordinárias, um grande cantor e violonista. Como foi ouvir sua voz e seu violão em contraponto à minha voz e ao violão do Rodrigo Campos?


C.L- Sinto especial prazer quando ouço o disco e me envolvo no enlace que eu e o Rodrigo tivemos ao tocar juntos. O Rodrigo é, possivelmente, um dos maiores e mais especiais músicos brasileiros da atualidade, e eu me senti muito honrado em tê-lo junto a mim, a nós, criando os cenários que emolduram as canções. O fato do Rodrigo ser, ele próprio, um cancionista de relevância e característica ímpares, fez com que a abordagem dele para as nossas canções tornassem-nas algo pictóricas. De certo modo, o cinema para Rodrigo, assim me parece, nasce da pintura, e não da fotografia. E o jeito como ele toca, como ele pensa o arranjo, a forma, a repetição, o instrumento... Tudo, enfim, surge desse gesto; tal qual é mesmo a pintura – quero eu crer assim. Já você, Romulo, tem no seu canto uma profundidade e uma dimensão temporal que nos faz viajar para um outro tempo. A sua relação com a música parece ter sido criada com informações que já hoje não circulam com facilidade. É que há, hoje, e o nosso disco deseja refletir também sobre isso, uma espécie de rapidez que quer tornar as coisas todas descartáveis. Todo o conhecimento fica querendo ser reinventado no segundo mesmo da sua descoberta. E há no seu canto uma relutância contra essa imediatez. O nosso disco, em si, tem esse desejo de tempo parado. Eu estou ali no meio. Eu me sinto ali no meio. Operando entre essas propostas de tempo que você e o Rodrigo imaginam e criam. Tento, e pareço conseguir, me adaptar a elas. Esse disco me faz elástico. Estou em São Paulo. E ainda assim, há uma Diamantina que ressurge.

R.F- Pertencemos a gerações diferentes, o que no processo de construção do nosso disco se assemelhou e se distanciou de suas convicções em relação ao momento atual da música brasileira?


C.L- O nosso disco carrega uma oposição (a oposição que as nossas gerações carregam?). Ele tem duas dimensões de tempo se digladiando: de um lado, e em última análise, falamos da atualidade e dos seus assuntos, falamos da velocidade e da insignificância que a vida alcança quando tudo nela quer terminar no instante mesmo em que nasce; por outro lado, a música que envolve todo esse discurso tem o tempo do artesanato. Tudo se desenvolve com uma preguiça que nos relembra que a única exigência da arte está na atenção e na presença. O momento atual da música brasileira apenas intensifica em mim a percepção de que estamos todos nós muito distraídos. Inclusive para perceber grandeza naquilo que se projeta desimportante.

® Ivan Costa

Photos . José de Holanda e Luan Cardoso

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